Terrenho
– Tudo isto que o senhor vê, é meu, sim senhor.
De cima do muro do cemitério, de onde procurava divisar alguns túmulos,
eu escutava o que dizia a velhota com um sotaque lusitano carregado da
gente do Norte, ao casal que procurava informações sobre a família.
– Todas estas fruteiras, continuava a velhota, fui eu que plantei, junto
com meu marido – que Deus o tenha! Algumas tive que mudar da beira da
estrada para cá, mais para cima, porque me roubavam as frutas. Outras,
eu mesma enxertei.
Juntei-me ao casal, pois a velhota, uma personagem do século XVIII ou
XIX, perdida naquelas paragens, no cimo de uma serra portuguesa, em
pleno século XXI, chamava-nos para conhecer a sua casa. Gente da cidade,
acostumada à vida sedentária e ao deslocamento em automóvel, subíamos o
caminho um tanto íngreme da casa da senhora com um bocado de esforço.
Ela, apesar da idade, não menos de setenta anos, sequer arfava. Pelo
caminho, ela colhia frutas – ameixas, figos, peras, maçãs – que nos ia
oferecendo com uma grande satisfação. Veio-me, de súbito, à mente a
história de Joãozinho e Maria. A boa velhinha parecia-me uma bruxa que
nos atraía, com sua aparência de bondade e desprendimento, a um covil,
onde nós seríamos, por fim, assados e comidos. Mas subíamos, instados
pela velha. Sozinha, viúva, idade avançada, filhos distantes, sua única
distração era a plantação e a missa aos domingos. Quando chegamos a sua
casa, a idéia de covil se cristalizou diante de mim, sobretudo por
existir uma toca fechada, onde um cão arfava e gania.
– Ah, este é o meu cãozito. É quem me faz companhia.
Tive a sensação de que era mais uma maneira de a velhota nos enganar. A
qualquer instante sairia daquela toca um ogro que a ajudaria a nos
devorar. Aberta a porta, saiu um cãozinho carinhoso, que logo
aproximou-se de nós, balançando o rabo e querendo nos cheirar e lamber.
Já demorávamos bastante ali, sem ter conseguido saber nada a respeito da
família do casal, uns Sebadelhes que haviam migrado há muito tempo para
o Brasil. Saímos, não antes de batermos umas fotos com a velhota,
sorridente, apesar de seus únicos dois dentes. Na sua solidão e
abandono, tendo, naquele instante, pessoas que a escutavam, ela insistia
para que ficássemos, pois nos daria um pouquito de pão. O sol, no
entanto, já andava no meio-dia e ainda teríamos que ir a Terrenho,
vilarejo de Trancoso, ali pertinho de Sebadelhe da Serra, onde nos
alojamos.
Descemos um pouco a serra, chegamos em Corças, onde encontramos uma
mulher que nos apontou um caminho melhor para Terrenho. Pelo mapa,
deveríamos fazer todo o caminho de volta, pois Terrenho ficava paralela a
Sebadelhe da Serra. A mulher disse haver uma ligação por cima da serra,
que tornaria o caminho mais curto. Voltamos e fizemos o caminho pelo
topo da Serra, aproveitando a visão do vale verde, todo plantado de uvas
e azeitonas, com o rio Douro, caudaloso, abaixo, aproveitado em
barragem. À primeira vista, Terrenho não nos pareceu grande coisa, pois
ficava ao largo da estreita rodovia. Não nos demos conta de que
deveríamos entrar pelas vielas estreitas e inclinadas para chegar ao
coração da freguesia.
– Bom dia, senhores. Qual o caminho para a igreja? O grupo de três
operários nos olhou com certa desconfiança e nos indicou o caminho,
único, sem erro.
Uma igrejinha modesta, sombreada por várias árvores frondosas, parecia
fechada. Em frente à igreja, um pequeno comércio que funcionava a um só
tempo, como mercado, posto telefônico e correio. Uma senhora idosa, que
não parecia nos compreender veio saber o que nós queríamos, mas foi a
moça do pequeno comércio que nos ajudou. Nova na região, não sabia dizer
nada, não senhor, mas sua tia talvez soubesse, pois vivera ali toda a
sua vida.
– Tia Agustinha, Ó tia Agustinha! Está cá um moço que quer ter com a senhora, gritava ela para um sobradinho.
Da janela do sobradinho, tia Agustinha disse lembrar-se, sim, dos
Sebadelhes e da menina Emília, que ali vivera e até deixara uma casita
fraquita, pois sim. Mas quem se lembrava realmente e poderia ajudar era o
senhor Amado que conviveu com eles. Descemos em direção à casa do
senhor Amado para saber alguma informação da família do casal. Havia
indícios, mais do que fortes de que a família teria vivido ali em
Terrenho, antes de partir para o Brasil. Com um ar de desconfiança,
sentado em sua cadeira de rodas, o senhor Amado nos recebeu, conduzidos
que fomos pela sua afilhada, Dona Justina.
– Sou sobrinho-neto de Emília Pereira... tentou dizer o senhor Sebadelhe, que procurava rastrear as origens da família.
– Impossível, cortou o velho, ela não teve filhos.
– O senhor não entendeu. Eu sou neto do irmão mais velho de Emília
Pereira, José Augusto Sebadelhe. Sou, portanto, sobrinho-neto de Emília
Pereira.
O velho ainda nos olhava com desconfiança, como quem quisesse nos pegar
em alguma contradição. O Senhor Sebadelhe disse que seu avô tinha
partido para o Brasil, ainda jovem e lá tinha constituído família.
Emília Pereira tinha ido ao Brasil para ficar com o irmão, mas por causa
de desentendimento com a cunhada teria voltado para Portugal. Ele
queria saber se o senhor Amado os conhecia, se tinha sido amigo de
Emília, de quem ele não tinha tido mais notícias...
– Amigo, não, apressou-se a dizer o velho, amigo de amizade, sim.
– Sim, amigo, no sentido brasileiro do termo, é amigo de amizade. O senhor, então a conheceu?
– Sim, conheci todos. José Augusto, António Augusto, Teresa, Filomena,
Joaquim e Emília. Filomena ainda vive? Perguntou o velho visivelmente
emocionado.
– Eu perdi contato com ela, não sei lhe dizer. Não sei nem mesmo notícia da filha dela...
– Telma, disse o velho.
– Sim, Telma. Pelo visto o senhor a conheceu também.
O velho, então, começou a falar de toda a família. Do avô e dos pais de
Augusto Sebadelhe, dos irmãos deste. Haviam, em criança e na
adolescência, convivido. Depois da partida para o Brasil, apenas
mantivera o contato com Emília, que ali morrera e deixara alguma coisa,
que ele mandara para Filomena e até hoje não sabia se ela recebera. A
cada palavra, a cada recordação, o velho se emocionava e tinha que
buscar ar para poder continuar a narrativa, muitas vezes atrapalhadas
pela Dona Justina, sobretudo quando se tratava de falar de bens ou de
algum documento da família. O senhor Sebadelhe, também emocionado dizia
do bem que o senhor Amado lhe fizera, ao proporcionar-lhe um reencontro
com a família, mesmo que fosse à base de recordações. Não tinha qualquer
interesse material, mas sentimental nesse reencontro. Agora podia dizer
com certeza onde vivera seu avô, ali estivera e pudera reencontrar as
raízes.
Valera a pena sair de tão longe na incerteza de encontrar algo e subir
uma serra de curvas estreitas para encontrar o passado personificado em
um velho numa cadeira de rodas.
Quando pegávamos o carro de volta para Salamanca, cruzamos com o padre
que levava a comunhão ao senhor Amado, e ainda ouvimos a voz esganiçada
da moça do pequeno comércio.
– Tia Agustinha! Ó tia Agustinha!
(episódio vivido nas Serras do Norte de Portugal, fim de verão, início de outono de 2002)
Milton Marques Júnior é professor, escritor e membro da APL
Obrigado por esta historia sr Milton Marques Junior
JoséMateus
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